sábado, janeiro 14, 2012

A Presa e o Predador (L.F.Riesemberg)

A página do livro de História que ele tinha nas mãos trazia um interessante texto sobre a propagação do Cristianismo em Roma.
    Podia-se ler, em letras marrons, ao lado da figura de alguns mártires:

    “Durante o Império Romano os cristãos foram constantemente perseguidos. A eles foram infligidas várias práticas de tortura e morte, como a crucifixação e o apedrejamento, além de serem fervidos no óleo quente ou devorados, nas arenas, por leões ou outras feras”.

    Eram ótimas ideias, pensou o leitor.
    Daria tudo para vê-lo ardendo. As terríveis bolhas se formando por toda a pele. A sua cara de assombro antes de cair no óleo. Antes disso, seu desespero pelo caminho até lá, quando o levavam em uma jaula sobre rodas e todo o povo lhe cuspindo e atirando pedras. Eu mesmo queria ser o carrasco a atirá-lo no caldeirão.
    Folheando o livro mais um pouco, surgiram outras páginas interessantes, mas atraiu-lhe a atenção o capítulo sobre a II Guerra Mundial.
    Deteve-se sobre outra imagem, agora a fotografia em preto e branco de uma fila de judeus magros e carecas, vestindo largas roupas listradas.
    “O campo de Auschwitz era equipado com quatro crematórios e câmaras de gás, construídas com o objetivo de exterminar os prisioneiros”, dizia a legenda da fotografia.
    O leitor continuava a fantasiar.
    Imagino que satisfação eu teria em vê-lo caminhando rumo à morte, quando ele  sentisse o cheiro de carne queimada das outras vítimas  saindo pela fumaça escura das chaminés. E depois, quando já estivesse trancado no falso lavatório, o gás venenoso começaria a ser expelido pelos canos e ele gritaria, tentaria correr no meio de centenas de outros desesperados, e agonizaria lentamente caído ao chão, babando espuma e esperneando de uma forma patética.
    Ficou olhando as outras fotos daquelas páginas, com várias cenas tristes de campos de concentração nazistas.
    Observava o livro um tanto satisfeito, mas de certa forma perplexo com a própria crueldade de sua imaginação.
    Continuou pensando consigo mesmo sobre o porquê de, na História, alguns terem ficado marcados como bons e outros como maus, até que um irritante tilintar metálico soou no fundo de seus tímpanos.
    Era o sinal anunciando o fim do recreio.
    Segunda-feira era sempre o pior dia da semana no Ensino Médio.
    Começava com duas aulas seguidas de História, tendo a professora mais boçal da Terra. Depois vinham mais ciquenta terríveis minutos de Matemática, e finalmente o intervalo.
    Esse era o momento em que dezenas de adolescentes ficavam jogando futebol na quadra de esportes, ou então beijando-se encostados nos muros, ou ainda fumando escondidos nos cantos mais invisíveis.
Mas ele não se encaixava em nenhuma dessas opções. Estava sozinho, sentado no chão, já estudando para a prova da próxima semana, e procurando parecer indiferente aos gritos dos alunos que corriam pelo pátio.
    Assim que ouviu o sinal, levantou-se, limpou o pó das calças e caminhou lentamente até o corredor, sendo várias vezes empurrado, no trajeto, por alunos maiores que passavam apressados.
Foi o primeiro da turma a regressar à sala vazia, e sentou-se calmamente em sua carteira.
    Logo depois começavam a entrar algumas meninas e meninos, mas só a metade ia para seus lugares a fim de aguardar a professora. O resto ficava em pé, ainda com os lanches nas mãos e continuando o bate papo sobre algum campeonato de futebol ou a respeito da garota da outra série que havia ficado com alguém na festa de sábado.
    Ninguém parava para conversar com ele.
    Sem mais o que fazer e tentando fugir daquele ambiente hostil, voltou a enterrar os olhos e os óculos sobre um dos seus livros que estavam na mochila.
    Ciências.
    Havia um trabalho para ser entregue dali a dois dias.
    Abriu as páginas ao acaso e encontrou um texto sobre a aranha marrom.
    “Sem o tratamento da picada, o veneno pode causar necrose do tecido atingido, falência renal e, em alguns casos, morte”.
    Logo abaixo aparecia uma nauseante fotografia da mão de uma pessoa picada. A pele havia ficado preta, numa imensa chaga aberta, com raras chances de voltar a ser um membro normal.
    Espero que existam muitas dessas aranhas em sua casa, no meio de seus lençóis, seu cretino.
    Remoía os frequentes pensamentos de ódio, quando foi surpreendido por um doloroso tapa em sua cabeça, que fez os cabelos se espalharem pela testa. O golpe vinha daquela mão gorda e suada do bastardo que merecia estar morto.
    Ele estava parado em pé atrás da carteira. Sorria como um débil mental, com seu rosto redondo, cabelos raspados e os dentes da frente separados. Mais uma vez o covarde lhe golpeara pelas costas, na frente dos outros, só para se mostrar para as meninas. E as burras ainda davam risinhos quando ele as olhava.
    —E aí, babacão? — falou com aquele ganido esgoelado de pré-adolescente, num meio termo entre voz de menino e de menina. Parecia estar sempre berrando, querendo mostrar ao mundo que estava “virando homem” com aquela voz de taquara rachada.
    Achegou-se perto do cangote da vítima.
    —Não se esqueça de colocar o meu nome no trabalho para quarta-feira.
    Vinha um péssimo hálito de sua boca.
    —Já sabe o que vai acontecer se não colocar, não é?
    E desferiu um soco em seu braço, logo abaixo do ombro.
    A dor foi aguda, porque já havia sido golpeado ali há alguns dias, e o hematoma ainda nem tinha se desmanchado.
    Os alunos terminavam de chegar à sala, acompanhados pela professora de Português, que entrou e fechou a porta.
    O monstro dirigiu-se ao seu lugar, nos fundos, e deixou o menino de óculos sozinho com suas dores e humilhações.
    Esse filho de uma cadela vai ver só por fazer essas coisas comigo! Ele me paga! Idiota, babaca, merdão. Eu vou matá-lo, eu sei disso. Vou enfiar esse livro na boca dele, depois pisotear aquela cara de mongolóide, imbecil, vou te dar um tiro na cabeça, estraçalhar esse rosto...
    A professora deu início à chamada e logo passou à lição.
    Leria um texto sobre Mitologia, e a tarefa dos alunos era reescrevê-lo no caderno.
    “...o Minotauro era um ser que tinha corpo de homem e a cabeça de touro. Vivia em um labirinto, e anualmente eram enviados sete moços e sete moças para servirem de sacrifício à criatura”.
    Aquele gordo imbecil dentro do labirinto, tremendo as pernas, se borrando de medo. O monstro aparece atrás dele, com seus chifres pontudos, segurando um machado afiado, e desfere um golpe que arranca aquela cabeça redonda e esguicha sangue por toda a parede...
    —Mauro, está distraído? — pergunta a professora.
    Toda a turma joga os olhares sobre ele, e alguns risinhos correm pelo ar.
    A cara fechada ficou mais quente e mais vermelha, quase a ponto de explodir.
    Teve que pedir desculpas e dizer que sim, estava prestando atenção.
    E o pior do dia ainda nem havia começado: a temível aula de Educação Física.
    Daria tudo para substituir aqueles últimos tormentosos momentos da manhã de segunda-feira por agradáveis minutos no laboratório de informática. Preferia ficar até mesmo sozinho na sala de aula, estudando, adiantando as lições. Mas não tinha jeito: era obrigado a dirigir-se ao ginásio, junto com os outros, e prestar-se à humilhação de correr e a fazer parte de um time no qual ninguém o queria.
    Não suportava ver aquele bando de adolescentes felizes com a última aula do dia, quando aquilo para ele era o ápice do inferno, quando todos ficavam reparando em seu corpo engraçado e rindo da sua pouca habilidade em qualquer tipo de esporte.
    Seu maior medo era o de que tivesse que fazer parte da equipe dos sem camisa. Se fosse obrigado a ficar com o peito nu, fingiria um ataque cardíaco para evitar o constrangimento. Só o veriam sem a camiseta do uniforme caso a tirassem à força — e se isso acontecesse, nunca mais pisaria naquela escola.
    Em cada início de aula de Educação Física era essa angústia. Adorava quando estava doente, porque o treinador cretino não poderia forçá-lo a jogar e o deixaria sentado no banco.
    Mas hoje sua saúde estava normal, e isso significava problemas.
    —Nada de choramingo: hoje quero ver você correndo atrás dessa bola! — disse o professor cabeludo, lhe apontando o indicador, quando o viu chegando ao ginásio. Quanto mais despercebido queria passar, mais era chamado para o centro da atenção de todos.   
    Mal começara a aula e ele já olhava o relógio. Ainda faltavam 45 minutos para o fim daquilo.

    Depois de um aquecimento, a bola começa a rolar no piso de concreto.
    Graças a Deus, ficara no time dos vestidos.
    Assumiu sua posição de zagueiro, já que nunca conseguiria fazer um gol, e fingia interesse na partida para agradar ao treinador, sempre procurando correr até os jogadores adversários que entravam na sua área.
    O gordo imbecil estava no time oposto, e era ele quem mais chegava com a bola nos pés, tentando chutá-la para o seu gol.
    Mauro ficou fazendo sua parte enquanto o tempo passava, sempre evitando mostrar a pouca habilidade no jogo e torcendo para que aquilo tudo acabasse logo.
    Observava o seu detestado colega se exibindo com a bola e torcia para que ele caísse com a cara no chão e quebrasse aquele nariz achatado.
    Quero ver seu sangue escorrendo por essa quadra e uma ambulância tendo que vir recolher seu corpo imenso e flácido. Bem que você podia tentar fazer um gol de bicicleta e cair de cabeça nesse chão duro e áspero, ficar em coma e não acordar nunca mais.
    Enquanto dava de comer a mais esses sentimentos, o tempo foi passando. Mas nos últimos minutos do jogo, o inimigo veio correndo em sua direção, empurrando a bola com os pés, sacudindo todo aquele corpo gigante e mole, e já calculando com o canto dos olhos o chute necessário para marcar o gol. Veio como uma rocha despencando montanha abaixo, sem nenhum jogador adversário para lhe impedir, e ao time restou depositar as esperanças em Mauro, para que ele fizesse um improvável drible e evitasse o chute ao gol.
    O franzino estudante, vendo-se naquela situação, sentiu-se maior, vislumbrando a possibilidade de ser um pouco mais respeitado pelos colegas e notado pelas meninas. Então adiantou-se para a bola, e desajeitadamente meteu o pé com toda a agressividade, sem nem saber para onde, assim que o bólido chegava com força total em seu campo de ação.
    Os dois corpos chocaram-se, ossos contra ossos, como uma colisão frontal de dois trens em alta velocidade, e ambos foram levados ao chão.
    Tudo escureceu por um momento.
    Mauro só viu o piso sujo da quadra e alguns tênis correndo em sua direção.
    Um apito gritou ao longe, indicando que o treinador finalizara o jogo.
    O garoto estava sem saber se havia sido o herói da partida ou se, mais uma vez, atrapalhara seu próprio time.
    Quando a gritaria começou a fazer sentido, identificou as primeiras palavras logo após o seu lance.
    —Seu filho da ...!
    Era a voz dele, do valentão.
    Vinha raivoso, com o punho fechado. Mauro permanecia deitado no chão, e os nódulos dos dedos gordos do antagonista se aproximaram em câmera lenta.
    Sentiu uma pancada na boca e seus próprios dentes se encarregaram de lhe cortar a gengiva. Um gosto de metal surgiu na mesma hora e o mundo ficou mais escuro quando o enorme corpo do colega veio sobre o dele.
    O gordo tentava soltar-se das mãos dos amigos para esganá-lo, e bradava em fúria:
    —Seu inútil! Se não sabe jogar, fique no banco!
    O treinador havia corrido até o local da confusão, pedindo calma a todos.
    —Foi ele que se enfiou na minha frente e me derrubou! — disse o retardado.
    Com o apito na boca, o professor apenas fitou o acusado, depois dispensou a turma e gritou para que todos ouvissem:
    —Na quarta-feira vamos jogar vôlei. Não vou querer ninguém parado!
    E todos se dispersaram.
    Mauro voltou para casa andando sozinho pela rua, ferido, imaginando-se forte como o Super-Homem, desferindo um potente e mortífero soco no rosto do inimigo.
    Os ossos da face dilacerando-se debaixo da minha mão, a pele dele sendo rasgada e abrindo uma vertente de sangue. Outro golpe duro na sua cabeça, e mais outro a fraturar-lhe o crânio. Caído ao chão, uma série de meus potentes pontapés atingiria as costas dele, quebrando-lhe as vértebras para que nunca mais pudesse voltar a andar.   
    Quando chegou em casa,  foi recebido pela mãe com um beijo.
    Ele fez cara feia e disse “saco” ao limpar o rosto.
    —Como foi a aula, querido?
    —Bem — disse, seco.
    Almoçava pensando no que o desgraçado devia estar comendo àquela hora.
    Espero que coma esterco. Ou então alguma coisa estragada. Vidro moído. Seu estômago explodindo e o sangue saindo pela boca e outros orifícios.
    —Aprendeu alguma coisa legal hoje, filho?
    Esse garfo sendo enfiado no olho dele, até o cabo...
    —A gente sempre aprende, mãe.
   
E dirigiu-se às sombras do seu quarto, para cultivar seus pensamentos de morte.

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