sábado, janeiro 14, 2012

Pessoas de Bem (L.F. Riesemberg)

Alguns acreditam que não existe sorte, ou coincidências: que somos peças de um tabuleiro, em um jogo criado por Deus.
Pois era mesmo difícil acreditar naquela sorte, ou coincidência, ou seja lá o que fosse. Eu olhava a foto da revista que estava em minhas mãos, e então via o mendigo na calçada. Eram a mesma pessoa, obviamente. Na foto, o homem sorria, estava bem barbeado e usava um terno caríssimo. Ao vivo, tinha um olhar vago, a barba crescida e vestia uns trapos. Mas era ele, com certeza.
    A revista trazia um artigo sobre um milionário do ramo automobilístico que estava desaparecido há semanas. Os filhos explicavam, na entrevista, que tratava-se de uma pessoa doente, que sofria lapsos de memória e esquecia-se completamente quem era, ou onde morava. Certa vez tinha ficado dias fora de casa, andando nas ruas feito mendigo.     Quando recobrou a memória, foi direto para um hotel cinco estrelas para se recuperar. Quanta diferença! Pegar o almoço em uma lata de lixo e jantar lagosta no restaurante mais caro da cidade.
    Agora tinha acontecido mais uma vez. Que mina de ouro eu fui encontrar naquela manhã, logo ali na sarjeta.
    E tive uma ideia: antes que o velho recobrasse a consciência, eu iria ajudá-lo, “descompromissadamente”. Assim que ele recordasse quem era, trataria de ser muito generoso com aquele que o acolheu.
    Aproximei-me dele, que estava sentado na calçada, e disse: “Meu senhor, como vai? Tem fome? Está precisando de alguma coisa?”.
    O velho olhou para os lados, tentando saber se era com ele mesmo, e então me encarou, ainda sem saber o que dizer. Eu continuei: “Olha, não estranhe. É que não suporto ver uma pessoa passando dificuldades, e gostaria de ajudá-lo, caso queira. Vamos lá, me diga seu nome”.
    O velho continuou embasbacado, sem se mexer, mas abriu a boca e soltou: “João”.
Ouvi aquilo com muita alegria. Era ele! O milionário era mais conhecido pelo sobrenome, mas foi batizado como João Carlos. E ouvi dizer que mesmo os desmemoriados mantêm na consciência algumas informações básicas, como o primeiro nome, e às vezes a idade. Coisas que uma criança também pode responder sobre si mesma.
    Àquela altura, até pensei em ligar para os filhos do homem. Mas se eu o fizesse, saberiam que haveria um certo interesse da minha parte. E eu queria ajudar aquele pobre coitado sem compromisso, e ser reconhecido pelo belo gesto. Numa dessas, até naquela revista eu apareceria. “A alma caridosa que ajudou um morador de rua sem saber que se tratava de um dos empresários mais ricos do país”, diria a reportagem. Isto sem falar na recompensa que a família me daria.
    Decidi ficar um pouco com ele, e tentar fazê-lo lembrar de sua vida de conforto e riqueza, diferente daquela miséria pela qual estava passando.
    Não tive dúvidas: um restaurante caro seria o remédio mais indicado para aquele caso de amnésia temporária. Porém, para entrar em um lugar desses, tive que tomar algumas providências antes.
    Antes de tudo, passamos em um barbeiro. Gastei um pouco de dinheiro para que ele tivesse a barba feita e aparasse o cabelo, mas, em troca, eu receberia mil vezes aquilo.
    Com o visual melhorado, ele ficou claramente mais contente e saiu de lá falando um pouco mais, dizendo o quanto apreciava (palavra de gente culta) a minha bondade. “Não se vê muita gente assim”, falou.
    Em seguida, passamos em uma loja que aluga trajes, para que ele pudesse entrar no restaurante, e principalmente para se sentir como o rico que era. Meia hora depois, ele já estava com uma roupa melhor que a minha. Para mim, não havia mais dúvidas: se descontasse os quilos a menos e aquela estranheza que há no rosto de quem acabou de se livrar de uma barba, aquele velho que peguei na rua era a mesma pessoa da revista. Já tinha até mesmo recuperado nos olhos e na pele uma parte daquele brilho que todos os ricos já parecem trazer do berço.
    Continuando minha missão de trazê-lo de volta à vida, coloquei-o em meu carro e fomos a um restaurante mais fino do que os com os quais estou acostumado. Eu tentava fazê-lo falar, mas ele se fechava, concentrado no sabor da comida e na delicadeza dos talheres, e resolvi não forçar a barra. Com todas aquelas informações, ele lembraria tudo antes que eu precisasse pagar a conta.
    Não lembrou. Passava o tempo e eu já não sabia aonde mais levá-lo sem que precisasse gastar com isso. Não me restou alternativa senão convidá-lo para minha casa: era preciso garantir que ele não me escaparia.
Contudo, quando saíamos do restaurante, demos de cara com um mendigo de verdade, que esperava na saída para pedir moedas aos clientes que se dirigiam ao estacionamento guardando o troco no bolso. Por outra daquelas malditas coincidências, ou não, os dois já se conheciam das ruas. Tinham até se ajudado uns dias atrás. Sem dar aqui muitas explicações, para não alongar meu relato, resumo esta incômoda parte dizendo que, para garantir minha recompensa, tive que aceitar levar também aquele outro homem conosco no banco de trás, acompanhado de seu inseparável cachorro vira-latas, é claro. Afinal, eu era uma pessoa boa e gostava de ajudar os outros, não é?
    Em casa, tive que oferecer uma ducha para meus convidados, e depois abri uma garrafa de vinho para brindar aquele dia feliz com eles. Minha esposa teve um sobressalto quando chegou e viu aquela cena em nossa sala. Mas eu consegui dizer, com os olhos, que tudo estava sob controle.     Quando ela foi até a cozinha, saí de perto das visitas e lhe expliquei, em um minuto ou menos, o meu plano. Ela estava louca comigo, porque o cachorro havia emporcalhado a varanda e destruído parte do jardim, enquanto eu me divertia com dois estranhos com cara de indigentes. Mas ao reconhecer um dos dois “mendigos” na revista, acalmou-se e decidiu entrar no meu jogo.
    Passaram-se alguns quartos de hora. O amigo do meu convidado esticava as pernas sobre a mesinha, com os meus chinelos nos pés. Em certo momento, quando eu já estava desistindo de fazer o homem lembrar quem ele era, e ia pedir para minha esposa dar um telefonema, ele começou a falar o que eu queria ouvir: “Sabe, filho, é muito bom saber que existem pessoas boas como você, que ajudam os outros”. Eu disse: “Que nada. Somos todos irmãos perante Deus. Todos devemos fazer caridade”, e outro blábláblá deste estilo.
    Depois de uma pausa, ele continuou a falar. Eu já sentia o que estava por vir, e meus dedos começaram a coçar de tanta excitação.
    “Tudo isso que você me deu hoje - o almoço, as roupas, a bebida, o banho quente e até a companhia, me fizeram lembrar de uma coisa”.
    “Sim! Sim!”, eu pensava. “Eu estava certo e sou um gênio!”.
    O milionário continuou:
    “Eu já tive tudo isso, meus amigos: carro importado, uma mansão... não riam, é verdade!”.
Eu sabia que era verdade. Ele não precisava se preocupar com isso. E prosseguiu a revelação:
    “Eu aprendi que a vida só é justa com quem é justo. Eu sou de uma família muito rica, que vocês certamente sempre ouvem falar. Mas depois que eu traí o meu irmão gêmeo, e quase o matei - por cobiça – eu perdi tudo! Agora minha própria família me detesta e nunca me perdoará. Fingem que não existo, e da última vez que tentei uma reaproximação, soltaram os cachorros e mandaram um segurança me bater, acreditam?”.
    “Mas estou bem agora, porque sei que posso contar com o bom coração de pessoas caridosas como você. Pessoas do bem!”, disse. E recostou-se confortavelmente em meu sofá, bebendo o último gole da taça do meu vinho francês.

2 comentários:

  1. Que lindoo.... apesar das intenções nem sempre serem as verdadeiras.....

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  2. Às vezes, a cobiça e o oportunismo nos pregam essas peças, não é verdade? Que desgraça! Um investimento tão caro e que não teve o retorno que o espertalhao esperava. Se formos fazer o bem a alguém, que seja de coração e de boa vontade. Não é final com moral da história, mas a mais pura verdade, certo?

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